E os livros, ainda se lembra deles?
Os livros (e não apenas) que me ensinaram a olhar, e não apenas a ver
Há uma nota importante antes de eu começar verdadeiramente com mais esta publicação de blogue. Eu nasci para a fotografia com o filme fotográfico e na era pré-internet. Na altura não havia redes sociais, nem os tube’s da vida e muito menos o streaming em direto. Mas havia livros. Dito isto, esta publicação não é para todos, mas espero que seja para si.
Há uma ilusão perigosa entre fotógrafos: a de que basta pegar numa câmara e disparar para fazer uma fotografia. É verdade que a prática é insubstituível, mas só ela não basta. A fotografia que realmente importa, aquela que nos transforma e permanece, nasce também nos livros. São eles que nos ensinam a pensar antes de ver, a dominar a ferramenta sem nos tornarmos escravos dela, e a sentir com profundidade aquilo que registamos.
Ao longo de mais de três décadas com uma câmara na mão, estes foram os livros (mas não apenas) que moldaram o meu olhar. Dividi-os em três pilares essenciais: Cultura Visual e Fotografia (onde aprendi a pensar), Técnica Fotográfica (onde dominei a ferramenta) e Inspiração de uma Vida (onde encontrei a alma). Cada um deixou marcas indeléveis, não apenas nas minhas imagens, mas na forma como habito o mundo através da objetiva.
📚 Cultura visual e fotografia — Onde o olhar se torna pensamento, ou vice-versa
Camera Lucida - Roland Barthes

Tinha pouco mais de 18 anos e entrei na minha primeira escola de fotografia, o IADE, ainda no Palácio. E ainda me lembro da Mónica Freitas me recomendar este livro, pequeno por fora mas grande por dentro.
Este não é apenas um livro sobre fotografia - é uma meditação sobre amor, perda e memória. Barthes escreve a partir da dor de procurar a essência da sua mãe numa fotografia de infância, e nesse processo desenvolve dois conceitos revolucionários: o studium (o interesse cultural e intelectual que temos por uma imagem) e o punctum (aquele detalhe que nos fere, que nos atravessa sem aviso prévio).
Ler o Camera Lucida é descobrir que uma fotografia pode ser mais do que luz e sombra - pode ser uma ferida aberta, uma presença ausente, um luto que nunca se resolve. É o livro que me ensinou que fotografar pode ser um ato de amor impossível.
A fotografia é certum: e é esta certeza existencial que a separa de todas as outras artes.
Não quero terminar esta minha abordagem a este livro sem uma consideração muito pessoal. Lembro-me, como se fosse hoje, de que, na primeira vez que li esta obra, entendi quase nada da mesma. Já a revisitei vezes sem conta ao longo dos anos, e cada vez que a releio há sempre algo de novo que lá está. Este é o maior elogio que lhe faço - o livro cresce convosco, ou vocês crescem com o livro, conforme quiserem posicionar-se perante a questão.
Photography, A Critical Introduction - Liz Wells

Se Barthes nos ensina a sentir, Wells ensina-nos a pensar criticamente. Este manual académico - mas nunca árido - oferece uma visão abrangente dos debates essenciais da fotografia contemporânea: identidade, género, política, ética, representação colonial. É o livro que devemos abrir sempre que a prática perde sentido, sempre que precisamos de lembrar que fotografar é um ato político, mesmo quando parece apenas documental.
Wells mostra-nos que uma fotografia nunca é neutra - carrega sempre as marcas de quem fotografa, de quando fotografa e de quem decide o que merece ser fotografado.
A fotografia não é apenas um meio de representação visual, mas um conjunto de práticas sociais e culturais com histórias e significados diversos.
The Power of the Center - Rudolph Arnheim

Arnheim não fala exclusivamente de fotografia - fala de perceção visual. E é precisamente por isso que este livro é tão poderoso. Ensina-nos que a composição não é uma receita, não é uma lista de regras a aplicar mecanicamente. É a descoberta instintiva - mas informada - da ordem escondida no caos visual.
O olho humano procura equilíbrio, tensão, centro. Arnheim mostra-nos as forças psicológicas que guiam esse olhar. Depois de o ler, nunca mais olhei para a construção de uma imagem da mesma forma. Passei a compor não com fórmulas, mas com consciência das dinâmicas invisíveis que tornam uma fotografia viva.
Mais uma nota acerca deste autor. O meu amigo José Luís Diniz realça, num comentário a esta mesma coleção de livros que partilhei numa rede social, que recomenda mais um livro do mesmo autor: Art and Visual Perception - A Psychology of the Creative Eye, igualmente extraordinário.
A composição não é uma característica externa acrescentada ao assunto; é a própria descoberta da ordem no caos.
Uma derradeira nota acerca deste livro. Uma das minhas fotografias de que mais me orgulho, até hoje, encerra a página de entrada desta página web. Bem lá no fundo, quase escondida. E representa, na perfeição, a influência que este livro tem em mim.
On Photography - Susan Sontag

Sontag é incisiva, provocadora, por vezes incómoda. E é exatamente isso que torna este livro indispensável. Ela questiona a nossa relação viciante com as imagens: será que fotografar nos aproxima do real ou nos distancia dele? Será que documentar um sofrimento é testemunhá-lo ou estetizá-lo?
Estas perguntas não têm respostas fáceis - e Sontag não as oferece. O que ela faz é obrigar-nos a confrontar a responsabilidade moral de cada disparo. Ler Sontag é aprender a perguntar por que fotografamos, e não apenas como. É um antídoto essencial contra a fotografia automática, inconsciente, irrefletida.
Através das fotografias, cada família constrói uma crónica de si mesma.
Mais uma nota muito pessoal, acerca desta autora. O livro Regarding the pain of others é um livro duro, pesado, mas igualmente importante na minha livraria de uma vida.
The Nature of Photographs - Stephen Shore

Shore, mestre da fotografia a cores e da observação paciente, oferece-nos um livro pequeno, mas luminoso. Aqui, a fotografia é desmontada em três camadas: a física (o objeto impresso), a representacional (o que a imagem mostra) e a mental (o que a imagem significa para quem a vê).
É uma forma elegante e clara de ensinar a “ler” fotografias - e, consequentemente, a fazê-las com mais consciência. Shore não dá receitas, mas dá clareza. E clareza, na fotografia, é já meio caminho andado para a mestria.
Uma fotografia pode ser vista, em primeiro lugar, como um objeto físico.
The Visual Culture Reader - Nicholas Mirzoeff

Vivemos num mundo saturado de imagens. Televisão, publicidade, redes sociais, cinema, fotografia - tudo compete pela nossa atenção visual. Mirzoeff reúne ensaios fundamentais que nos ajudam a situar a fotografia neste ecossistema complexo e vertiginoso.
Ler este livro é perceber que fotografar não é um gesto isolado - é participar numa corrente cultural imensa. E fazê-lo com responsabilidade exige que compreendamos as forças que moldam o modo como produzimos e consumimos imagens. É um mapa essencial para quem quer fotografar com os olhos bem abertos.
Ver é sempre um ato interpretativo.
Ways of Seeing - John Berger

Este é o livro que mudou tudo. Baseado na histórica série da BBC, Berger demonstra de forma magistral que o ato de ver não é natural nem inocente - é cultural, político e histórico. O nosso olhar está impregnado de ideologia, de classe, de género, de poder.
Quando enquadramos uma fotografia, não estamos apenas a registar o que está à nossa frente. Estamos também a carregar séculos de história da arte, preconceitos sociais, hierarquias invisíveis. Berger ensina-nos a desconfiar do nosso próprio olhar - e essa desconfiança saudável torna-nos fotógrafos mais atentos, mais humildes, mais justos.
O modo como vemos as coisas é afetado pelo que sabemos ou pelo que acreditamos.
🛠 Técnica fotográfica - Onde a mão aprende o que o olho imagina
Basic Photography e Advanced Photography - Michael Langford

Langford foi o meu professor silencioso. Quando comecei a querer aprender fotografia, esta era a bíblia e, na minha modesta opinião, ainda hoje é. Claro, metódico, rigoroso sem ser intimidante. Os seus livros são bíblias técnicas - explicam tudo, desde os fundamentos da exposição até às técnicas mais avançadas de controlo de luz e revelação.
Mas o mais importante: Langford ensina que a técnica existe para servir a visão, não para a aprisionar. O objetivo final de dominar a câmara é esquecê-la - para que possamos fotografar com liberdade total, sem pensar em diafragmas ou tempos de exposição, apenas em luz, forma e significado.
A técnica liberta - quando bem compreendida, não aprisiona.
Mais uma nota pessoal: Langford faleceu no ano 2000, mas os seus livros continuam a ser publicados pelos seus associados, com os mesmos princípios e mantendo o nome do autor original como cabeça de cartaz.
Ainda, a fotografia não mudou assim tanto pelo que os fundamentos ainda hoje são os mesmos, logo estes livros são atuais.
Workflow e Edição de Imagem - Martin Evening e colaboradores

Se fotografar é escrever com luz, editar é polir a escrita até que brilhe. Martin Evening foi o meu mestre incontornável do workflow digital - seja no Lightroom, no Photoshop ou no Camera Raw.
Os seus livros ensinam-nos que editar não é “corrigir erros” nem “melhorar” a fotografia artificialmente. É revelar a intenção que já estava presente no momento do disparo. É respeitar a imagem enquanto a levamos até à sua forma mais completa. Com Evening, aprendi que o tratamento digital é também um gesto criativo - e que o workflow é, sim, uma forma de arte.
Mais uma nota pessoal: hoje, os livros sobre estas e muitas outras áreas técnicas e tecnológicas acabaram, ou existem em formatos digitais. Com a evolução galopante das ferramentas digitais, faz pouco sentido preparar um livro e imprimi-lo em papel apenas para já estar desatualizado no momento em que chega às livrarias. Hoje há os tube’s, os canais, os influencers digitais. Pode ser que ainda faça uma nova publicação acerca deste assunto.
Editar não é corrigir - é contar melhor.
💫 Inspiração de uma vida — Onde a alma encontra a luz
A Obra de Robert Mapplethorpe

Mapplethorpe foi - e continua a ser - o meu choque estético mais profundo, e também técnico. As suas flores, os seus corpos, os seus contrastes radicais de preto e branco: tudo nele é precisão absoluta, desejo puro, provocação consciente.
Os livros que compilam o seu trabalho não são apenas portfolios bonitos. São convites à coragem. Mapplethorpe ensina-nos que a fotografia pode - e deve - transgredir, ousar, incomodar. Que a beleza pode existir onde outros veem escândalo. Que a forma perfeita pode conter emoção violenta. Foi com ele que aprendi a não ter medo da câmara, da luz - nem do que ela pode revelar.
Eu não quero fazer arte bonita. Quero fazer arte que me obrigue a olhar.
Série de 4 DVD's Contacts

Esta série - especialmente os três primeiros volumes - foi uma revelação que mudou completamente a minha forma de entender a fotografia. Aqui, os grandes mestres (Cartier-Bresson, Salgado, Arbus, entre muitos outros) folheiam as suas próprias folhas de contacto e explicam as escolhas, os erros, os momentos quase perfeitos.
Ver isto é assistir à fotografia a nascer - humana, imperfeita, hesitante, genial. É perceber que até os maiores fotógrafos do mundo duvidam, erram, voltam atrás. E que o génio não está apenas na imagem final, mas em todo o processo de procura, tentativa e refinamento. Foi aqui que aprendi que fotografar é, acima de tudo, um exercício de humildade e persistência, de trabalho.
Em mais uma nota pessoal, tenho a felicidade de possuir uma edição limitada de 1000 exemplares da caixa com os três primeiros DVD´s desta série, em Português, uma verdadeira edição de colecionador.
As melhores fotografias estão muitas vezes nas folhas de contactos - não nas impressões finais.
Para terminar, por agora
Fotografar é um ato contextual, e estes livros são apenas alguns dos muitos que poderiam aqui estar — mas estes são os companheiros da minha vida.
Alguns ensinaram-me a pensar com rigor. Outros, a dominar a ferramenta com precisão. E outros ainda, a sentir com intensidade. Mas todos, sem exceção, lembram-me a mesma verdade essencial: a fotografia não começa nem acaba na câmara. Começa na curiosidade intelectual, vive na disciplina técnica e realiza-se — ou nunca se resolve totalmente — na emoção partilhada. A melhor fotografia não é a mais técnica, nem a mais bonita. É aquela que nasce de um olhar informado, treinado e profundamente apaixonado.
Se estás a começar, escolhe um livro de cada secção. Lê devagar. Volta a ele. Deixa que te mude. E depois, pega na câmara — porque só assim as palavras que lá se escrevem se tornam imagens, e as imagens se tornam tuas.
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